O Dogma e a linguagem dos nossos dias

O Pedro Ravazzano, membro do Apostolado Veritatis Splendor, levantou recentemente a questão da necessidade de uma urgente correção na tradução do Missal Romano para a língua portuguesa. Esta questão tem ligação com outra relativa à linguagem. É um ponto muito defendido por teólogos e figuras públicas da Igreja dos dias de hoje que a mensagem cristã deve ser expressa de modo que os homens de cada época e cultura a entendam e que, para isto, a Igreja deve procurar atualizar seu modo de expor a Sagrada Doutrina. Teria sido este espírito o animador do Papa Beato João XXIII ao convocar o Concílio Vatricano II. Ou pelo menos, é o que dizem os defensores do CVII.

É verdade que a maneira de expressar certas idéias mudam de cultura para cultura e, dentro de uma cultura, de época para época. Também é verdade que a Igreja, devido à sua própria vocação missionária, deve procurar se expressar de modo que todos os homens de todas as épocas e culturas entendam a mensagem do Evangelho. O problema é quando estas verdades servem de ponto-de-apoio a algum Zé-corneta mal-intencionado, como os progressistas, que dizem que o dogma evolui; ou os relativistas, que dizem que não existe uma verdade absoluta e sim “verdades” que variam de acordo com o ambiente cultural. O artifício retórico usado para dar aparência de verdade a este tipo de distorção é o de que a rigidez e a erudição das fórmulas tradicionais não passam de pura vaidade. Se por um lado, existem aqueles legalistas e pedantes que se apegam às formulas como se fossem “roupas de grife” e, como tal, indicadores de um certo status, do qual se valem para olhar os que não possuem o mesmo apego de cima para baixo, por outro lado, e é o que eu pretendo mostrar aqui, erudição não é uma simples ancilla vanitatis. A verdade é que nem todos os modos de expressão são suficientes para expressar as verdades necessárias à nossa salvação. Isto vale principalmente para a linguagem usada nos nossos dias, que incorporou ao vocabulário corrupções como formas supostamente legítimas de desenvolvimento histórico de algumas expressões.

Mas, como eu dizia, a linguagem dos nossos dias não é suficiente para expressar as verdades da nossa fé. Por duas razões: primeiro, algumas palavras se tornaram ambíguas em sua evolução; segundo, algumas idéias passaram a ser expressas por palavras que não alcançam todo significado das que eram usadas antes.

No primeiro caso, temos o exemplo da palavra “substância”. Ela nasceu na filosofia, e seu sentido completo é aquele que a filosofia lhe deu, isto é, aquilo que permanece o mesmo em meio às mudanças. O corpo de uma pessoa muda e evolui, mas a pessoa é sempre a mesma. Mas a idéia mais comumente evocada por esta palavra hoje em dia é a de substância material, que nos foi introduzida pela Química. Se pegarmos, por exemplo, o dogma de que Deus Filho é consubstancial a Deus Pai, temos aí um grande problema, pois a divindade não possui matéria nenhuma, é puro espírito. O conceito filosófico de substância é adequado para preencher de sentido a palavra. O conceito químico, mais atual, mas fácil de alcançar, não é.

No segundo caso, temos o exemplo do padre da minha paróquia, que – vejam bem – na Missa das crianças, na hora da Consagração diz que Jesus estava “ceiando com seus amigos, ao invés de “ceiando com seus discípulos. Amigos é uma palavra mais acessível do que discípulos, mas não expressa totalmente o que significa ser discípulo, pois amizade não evoca a idéia de aprendizado. Também não seria apropriado usar palavras como alunos, ou aprendizes, pois a idéia de discipulado é maior do que os significados destas palavras, pois envolve a imitação do mestre, envolve também o serviço ao mestre, à causa do mestre. Discípulo é uma palavra difícil de pronunciar, com um conceito distante – quem hoje se diz discípulo de outra pessoa a não ser alguns mais eruditos? – mas é a única apropriada para exprimir a relação do Senhor com aqueles que conviveram com Ele.

Devemos ter esta insuficiência sempre em mente, pois às vezes a nossa boa intenção de entendermos melhor a nossa fé pode nos fazer cair na armadilha de absorver um conceito atual, mas pobre, com a ilusão de termos tido sucesso na nossa busca de um melhor entendimento. O Sagrado Magistério, isto é, os bispos que estão efetivamente em comunhão com o Papa, está aí para interpretar o depósito da Sagrada Escritura e da Sagrada Tradição, e para exprimir da maneira mais acessível as verdades que devem alimentar nosso espírito. Se às vezes esta maneira de se expressar ainda não é tão simples quanto esperamos é pelas razões apontadas acima, e por outras, mas nunca por mera vaidade.

Por isso, tomemos cuidado para que, no afã de entendermos melhor a nossa fé, não acabemos sendo rebeldes, desrespeitando a Tradição e aceitando idéias que servem mais para confundir do que para ensinar.